Certas frase me irritam, não porque sou ferrenho defensor dos
pobres, e das políticas assistencialistas, mas sim porque ela, assim como outras
frases do tipo, expressa o profundo desconhecimento e desinteresse do
brasileiro sobre sua própria história e sua própria política.
Diferentemente do discurso conservador norte-americano, por
exemplo, que sustenta toda sua visão neoliberal sob a perspectiva (burra
também) da proteção das liberdades individuais, sinto nesse tipo de leitura
sobre as políticas sociais no Brasil um ranço mais perverso: a velha ideia de
que pobreza e vadiagem andam juntas.
O discurso de que sempre falta moral e decência no outro
(“vadio” e “safado” em potencial) explica todos os problemas nacionais, do
congresso até o assalto na esquina, mas, ao mesmo tempo, furar a fila e não
devolver o troco dado a mais é totalmente aceitável.
“O que? Eu, trabalhar tanto e pagar tanto imposto para dar
dinheiro para vagabundo? Isso é um absurdo! Só no Brasil mesmo!”
A mesma mesquinharia está presente no discurso de quem é a
favor da diminuição da idade penal e que acha um absurdo o dinheiro gasto para
alimentação dos presidiários brasileiros.
Acontece que, quando você compartilha esse tipo de ideia ou
simplesmente deixa com que o mito da vadiagem brasileira se perpetue, por
exemplo, está colaborando justamente com a perpetuação das próprias políticas
sociais que acha que está criticando, pode acreditar, porque a base do
assistencialismo é justamente a ideia de que a massa é burra e dependente.
A bolsa família pode e deve ser criticada. Mas façamos isso
de maneira coerente, desconstruindo algumas dessas famosas frases mesquinhas:
“O governo do PT usa o bolsa família só para se promover e
ganhar eleição”
Lula-bolsa-família
Sim, as políticas assistencialistas têm esse caráter
político populista. Mas o buraco é mais embaixo. Primeiramente que tal política
já havia sido desenhada no governo FHC e, mais do que isso, ela é uma indicação
do próprio Fundo Monetário Internacional para países em desenvolvimento.
Sabe por quê?
Porque injetar dinheiro em comunidades pobres é interessante
para a circulação do capital. Lição simples de história econômica geral. O
governo não está dissolvendo as desigualdades com esse tipo de política, mas
está criando condições para o desenvolvimento econômico. E se você é daqueles
que acha que desenvolvimento e crescimento econômico são sinônimos de melhorias
de vida para a população, é interessante lembrar o que Delfim Neto disse lá no
governo militar sobre o esperar o tal do bolo crescer para depois dividir.
Estamos esperando o pedaço dos supostos lucros da Transamazônica até hoje e
vamos esperar o bolo do pré-sal sentados.
A transferência direta de renda, por outro lado, tem
impactos muito grandes para populações que vivem em extrema pobreza e em
situações marginais. Se você é daqueles que compartilha fotos de crianças
desnutridas, saiba que o Haiti é bem ali e que há sim pessoas que tiveram sua
vida melhorada por esse tipo de política. Logo, não é por acaso que o PT tem
apoio popular.
Tal crítica, portanto, não toca no verdadeiro ponto político
do assistencialismo (seu papel econômico), ao mesmo tempo em que não considera
as demandas sociais que sustentam o próprio populismo.
“Não basta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar”
Lula-bolsa-familia
Se bem me lembro, o próprio Lula se reelegeu com essa. Em
tese, o programa não se baseia somente na política de transferência direta de
renda:
“O Bolsa Família possui três eixos principais focados na
transferência de renda, condicionalidades e ações e programas complementares. A
transferência de renda promove o alívio imediato da pobreza. As
condicionalidades reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de
educação, saúde e assistência social. Já as ações e programas complementares
objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam
superar a situação de vulnerabilidade.
O Programa atende mais de 13 milhões de famílias em todo
território nacional de acordo com o perfil e tipos de benefícios: o básico, o
variável, o variável vinculado ao adolescente (BVJ), o variável gestante (BVG)
e o variável nutriz (BVN) e o Benefício para Superação da Extrema Pobreza na
Primeira Infância (BSP). Os valores dos benefícios pagos pelo PBF variam de
acordo com as características de cada família – - considerando a renda mensal
da família por pessoa, o número de crianças e adolescentes de até 17 anos, de
gestantes, nutrizes e de componentes da família.”
MDS.gov.br
Por definição, portanto, o programa “ensinaria a pescar”.
Acontece que geralmente quem reproduz a frase recarrega a pilha do ranço
mesquinho, considerando que se o pobre brasileiro não for ensinado a trabalhar,
continuará na velha vadiagem.
Não é por acaso que a frase foi repetida pelo próprio
ex-presidente, porque, se por um lado se ganha o miserável, nunca assistido por
política alguma, pelo benefício, por outro se ganha a classe média, onerada de
impostos e de trabalho, que deseja que todos sejam onerados igualmente.
Na prática, no entanto, ensinar a pescar não significa que o
miserável deixe de ser marginal, nem para o governo e nem para aquele que tem
medo do outro vadiar com o dinheiro público. Não há uma preocupação legítima
com a inserção desse miserável na sociedade do trabalho. Pelo contrário, o fato
da classe C ter chagado ao paraíso do consumo tem sido motivo de chiste:
“Não tem dinheiro para colocar crédito, mas tem dois
celulares.”
Neste caso também a crítica é burra. Além de reproduzir a
ideia de que pobreza e vadiagem caminham juntas, foi usada como slogan justamente
porque satisfaz as preocupações de uma classe média mais reformista.
“Está cheio de gente que não precisa, mente e ganha o
benefício”
bolsa-familia
Essa expressa uma das principais contradições do
neoliberalismo à pururuca e feijão tropeiro: a necessidade de fiscalização de
políticas públicas implica em necessidade de funcionalismo público. Mas o
funcionalismo público é corrupto…
Como fiscalizar os grupos mais safados da sociedade: o
funcionário público preguiçoso e o pobre vadio, que mente para ser sustentado
por aqueles que trabalham. Essa crítica está carregada da mesma lógica das
demais críticas mesquinhas e é tão rasa quanto.
Sim, há necessidade de fiscalização de uma política social
que, em tese, deveria ser transitória. Idealmente, uma política de
redistribuição de renda deveria inserir o marginalizado na sociedade. A
proposta é tirar o outro da miséria, logo, o ideal é que as pessoas não precisassem,
depois de um tempo, do benefício.
Acontece que, como discuti antes, a dissolução das
desigualdades de fato não é o objetivo real das políticas de redistribuição
direta de renda. Uma estrutura de impostos menos desigual, a responsabilização
do Estado pelo suprimento de direitos básicos como saúde e escola, além de um
aparato de funcionalismo público suficiente são políticas de um Estado de bem
estar social e não de um Estado neoliberal.
O Brasil tem um Estado que intervém nas políticas de juros,
que financia o desenvolvimento de empresas, mas não tem uma política de Estado
de bem estar social.
Bem, se vamos cobrar do Estado a aplicação eficiente e a
fiscalização do programa, antes temos de cobrar eficazes políticas de
dissolução da desigualdade e da miséria, de inserção do marginalizado na
sociedade. Pouco importa se as pessoas
não precisam mais do benefício se ele é, na verdade, uma forma de fazer o
dinheiro circular…
“Enquanto uns
trabalham, outros usufruem”
garota-laje-salve-jorge
Por fim, voltamos para a frase que inspirou esse post,
porque ela é um resumo da falta de consciência política e do vazio da crítica
mesquinha. O que está implícito nessa frase é, na verdade, outra bastante dita:
“Pago tanto imposto e não tenho retorno nenhum.”
As duas reproduzem a ideia do Estado como sangue suga e
representam o que costumo chamar de neoliberalismo a feijão tropeiro (o papel
do sudeste na perpetuação do conservadorismo o brasileiro do outro post…).
Ora, mas é justamente a política neoliberal que propõe os
assistencialismos como placebo e instrumento político-econômico! A ideia de que
a estrutura de impostos é um elefante branco inútil é a base dessa mesma
política que propõe os programas assistencialistas! Novamente aqui o que
alimenta a crítica não é o reconhecimento da ineficácia das políticas sociais
ou uma discordância com as orientações políticas e econômicas do Estado
brasileiro, mas sim a velha ideia do brasileiro vadio e corrupto por natureza.
Logo, além de reproduzir a forma como a sociedade brasileira
se vê no espelho, essa crítica também expressa essa falta de consciência e
educação política.
Na verdade, as críticas sobre o programa bolsa família são
somente um exemplo das inúmeras leituras inconsistentes e incoerentes que vejo
todo dia no Facebook, que escuto no táxi ou no balcão da padaria e que só
servem para consolidar as mesmas coisas que elas supõem criticar.
É justamente o conservadorismo burro do brasileiro que tem
permitido a reprodução da mesma política burra que se adora criticar.
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